Em busca do tri, Lucas Moraes sonha em difundir rali: ‘como Guga fez no tênis’

A fala tranquila e o jeito sereno de Lucas Moraes em todas as entrevistas concedidas contrastam com a sede de vitórias do piloto em meio às paisagens do off-road. É assim que o bicampeão do Rally do Sertões se apresenta ao mundo – sim, ao mundo, sobretudo pelo começo da temporada que tem feito: o brasileiro venceu uma etapa do Dakar, feito inédito para o Brasil, depois de um pódio em 2023. No último domingo (7), venceu a última etapa do Mundial de Rally Raid (W2RC), em Portugal, fechando a participação no pódio.

O brasileiro de 32 anos desponta, seja em frases bem pontuadas nas aparições públicas ou no apetite voraz que mostra ao volante, sempre como um dos maiores expoentes do automobilismo brasileiro atualmente. O Sertões pôde encontrar essas duas versões de Lucas. Inicialmente, desde 2018, pelos caminhos do Brasil, com a consagração nos títulos do Rally de 2019 e 2022, ao lado do navegador Kaique Bentivoglio. Ou, na sua outra versão, em uma entrevista exclusiva concedida ao novo site do Sertões.

Por quase uma hora, Lucas falou sobre competição, a busca pelo tricampeonato do Rally dos Sertões, o começo no esporte e muitas expectativas, que vão desde seus resultados esportivos à resposta do público em relação às competições off-road no Brasil. Segundo ele, há espaço para a popularização do rali no país, em um movimento parecido com o que ocorreu no tênis, com Gustavo Kuerten, e no surfe, com Gabriel Medina.

A entrevista de Lucas ao Sertões foi dividida em duas partes. A primeira você pode acompanhar a partir de agora:

Sertões: Você estreou no Rally do Sertões em 2018 e hoje é um piloto oficial de fábrica no Dakar e no Mundial. Como foi esse percurso, das dificuldades ao aprendizado?

Lucas Moraes: Foi um sonho de poder participar dos Sertões em 2018. Claro, sempre acompanhei a prova muito próxima, de forma muito próxima. E pra mim foi uma surpresa, porque a gente competiu com um carro que não era pra disputar na geral. Eu sempre gostei muito do esporte, fiz outras categorias iniciais. Até que em 2018 surgiu a oportunidade de ir para os Sertões. Fizemos uma prova super constante, terminamos em quarto na geral, só atrás dos carros das naves que disputavam a geral. Foi uma surpresa, dentro de uns Sertões, com tanta gente rápida. Naquele momento, a gente entendeu que talvez a gente tenha uma oportunidade de construir algo mais sólido a partir desse resultado. Mas, se eu te falar que no ano seguinte a gente imaginou ganhar o título, jamais. A gente tinha uma certa chance de disputar pelo menos o pódio entre os três. A primeira etapa de 2019 foi um pouco um choque, porque a minha cabeça era ainda a tocada que eu estava andando com o carro nacional. Eu estava num ritmo completamente diferente. Eu tinha uma ideia de poupar carro, de não poder andar flat o tempo inteiro. E esses carros mais modernos, não, você pode andar direto. Então, em 2019, foi um ano, com o título, que aprendi naqueles dois primeiros dias.

Sertões: E o título de 2022?

Lucas Moraes: Tive um hiato até em 2021, que eu não fui para o Sertões, eu decidi focar um pouco mais numa carreira internacional naquele ano, então eu fiz uma etapa do Mundial em Portugal. Foi a primeira vez que eu subi num pódio e pilotei um carro da Toyota. E 2022 era um ano muito especial para o Sertões, os 30 anos da prova. A gente construiu um time com parceiros e tudo, para a gente poder fazer a prova num nível para tentar disputar geral. Foi uma prova emblemática, muito longa. Tive um problema sério na décima etapa: eu perdi a direção hidráulica do carro, faltando ainda 190 km para acabar. O carro fica inguiável, foi um momento muito difícil, porque a gente liderou o rally de ponta a ponta. Chegou naquele dia, 190 km sem direção hidráulica, poderia perder a liderança. A gente estava 20 minutos à frente e perdeu só nove.

Sertões: Qual é a expectativa para o Sertões desse ano?

Lucas Moraes: A gente está buscando realmente o tricampeonato, seria incrível. Esse vai ser o foco do ano, tentar levar o tricampeonato para a equipe. Agora, com o clube de fábrica, seria bem interessante. Mas temos pedreiras pela frente, e como sempre, vamos ver como é que vai ser o roteiro que vocês vão nos entregar. Mas a expectativa é boa. O Kaique volta a navegar para mim aqui, porque no Mundial estou com o Armando, que é um espanhol, mais pela questão de navegação em deserto, mas o Kaique navega aqui para mim. E é isso, tentar, quem sabe, o tricampeonato seria um sonho.

Sertões: E para o restante do Mundial?

Lucas Moraes: O meu objetivo seria ainda buscar, tentar terminar o campeonato mundial entre os três primeiros. Seria um mega resultado para a minha primeira participação. Para a equipe Toyota, como um todo.

Sertões: Como você vê a popularização do rali no Brasil? E como você ajuda nesse processo?

Lucas Moraes: Pelo feedback que eu recebo quando eu vou para essas corridas, o que eu mais recebo depois do Dakar, ou quando a gente ganhou uma Especial no Dakar, ou quando a gente fez o pódio ano passado, agora que a gente estava indo bem no Mundial. Falam que posso fazer o que o Guga fez com o tênis. Isso para mim seria um sonho, assim, de novo, eu sei o quão distante ainda nós somos de um tênis, mas se eu puder ajudar a pôr um pouco desse grãozinho no castelo de areia para que isso possa ser viável, seria incrível. O brasileiro está certo de querer ter alguém ganhando, a gente que sempre teve tanta gente boa, especialmente na Fórmula 1. E seria uma honra poder ajudar a construir essa marca do Brasil também como um rali, um expoente no rali lá fora. Eu acho que o surf é um ótimo exemplo, assim, talvez era um esporte que era quase marginalizado lá na década de 1990 e depois mudou completamente para ser hoje um esporte olímpico com os atletas brasileiros top. Eu espero poder ser mais um degrauzinho aí, depois que tanto já, o André Azevedo já fez, o Jean Azevedo, o Gui Spinelli, enfim, tantos outros nomes, eu espero ser mais um que possa ajudar.

Sertões: Como é que você participa do desenvolvimento do carro?

Lucas Moraes: Então, agora, sendo um piloto Toyota ou de fábrica, uma das coisas que eu percebo de diferença é que realmente a preparação para as provas são muito mais intensas. Por exemplo, antes do Dakar, a gente ficou uma semana na Namíbia, no deserto, lá que são as maiores dunas do mundo. A gente usou uma semana inteira para desenvolver o carro. Desde tamanho de volante até suspensão, tipo de freio, tipo de banco. A gente faz esse trabalho de pré-temporada, que no fundo é pré-Dakar. Ao longo do ano, a gente tem testes para a evolução do carro, vai passando feedback para a engenharia, para ir ajustando o que precisar para as outras provas. Então, é muito de feedback, de correr, de treinar e passar feedback para o time.

Sertões: Quais as diferenças entre uma equipe brasileira e uma estrangeira?

Lucas Moraes: Lá fora, o conhecimento da parte de engenharia de dados é mais estruturado hoje. Acho que o Brasil ainda tem um gap para chegar lá. Acho que em termos mecânicos o Brasil é excelente, mas quando é necessário colocar a inteligência nisso, eu acho que esse é um salto que os europeus já conseguiram dar. Aqui no Brasil, os carros também estão evoluindo nesse sentido. A gente está indo no caminho certo para ter esse nível também de sofisticação, vamos dizer assim. Então, eu diria que essa parte de dados é o que eu senti bastante. Quando eu chego de uma especial no Dakar, eu já recebo um relatório dos nossos engenheiros falando o que eu poderia ter feito melhor. Isso é uma coisa que numa equipe de fábrica faz muita diferença.

Sertões: Em qual sentido o Rally dos Sertões é importante para esse desenvolvimento, para que o Brasil conseguisse chegar nesse ponto?

Lucas Moraes: O Rally dos Sertões é o grande pilar, a vitrine para os pilotos brasileiros. Não só pela sua qualidade técnica, mas também pela exposição e respeito que outras pessoas, outros pilotos estrangeiros têm pela prova. O Sertões é uma prova de qualidade técnica muito alta, ensina muito a pilotar, porque você está sempre em estrada, não tem alívio. Você está sempre em estrada, não é igual o deserto, onde tem espaço. Você tem que frear no lugar certo sempre, você não pode escapar. Em termos de pilotagem, o Sertões exige muito e, por isso, forma bons pilotos. Quando vai para uma prova de estrada lá fora, normalmente os pilotos brasileiros também se destacam. Então, o Sertões tem um papel fundamental nessa fundação e construção dos pilotos.

Sertões: É como se o Sertões fosse Mônaco para a Fórmula 1?

Lucas Moraes: É, eu acho que pode ser uma coisa nessa linha, porque a gente está sempre andando no estreito ali, te faz realmente ser muito técnico na pilotagem. Tem uma variação também grande de terreno, que isso é legal para você entender onde tem mais tração, onde tem menos tração, onde não tem, onde frear. Eu acho que pode ser uma comparação interessante, sim.

Sertões: Como é a sua relação com a Fórmula 1?

Lucas Moraes: Pra ser sincero, eu acompanho mais hoje do que quando eu era menor, porque eu não acompanhei quase nada do Senna, eu tinha três anos quando ele faleceu. Claro, usei muito o Senna como minha referência, quando eu corria de moto. Todos os meus treinadores nessa época mostravam muito do Senna, então, como um brasileiro, sem dúvida, o maior ídolo para mim, também, do esporte é o Senna. Sei muito da carreira, tal, mas acompanhar a Fórmula 1, em si, menos. Agora, acompanho mais até pela Red Bull, por tudo.

Sertões: Quais as diferenças entre as relações com outros pilotos durante o Mundial e o Sertões?

Lucas Moraes: Quando eu chegava nas provas, eu olhava o Nasser, o Carlos Sainz como meus ídolos, sempre acompanhei pela televisão. Quando você começa a participar das provas, começa a querer ter resultado, e claro, agora representando uma marca, você tem que mudar a chavinha para ganhar desses caras. E é claro que não vai ser do dia para a noite, porque eles são muito experientes e tudo, mas essa é a primeira fase mental, que você tem que ter para conseguir uma hora ganhar esses caras. Esse ano, especialmente, eu fui disputar mesmo. E acho que muito disso me ajudou a ter uma vitória na especial. Aqui, no Brasil, você tem mais a noção de que está todo mundo no mesmo nível e vai ter muita disputa mesmo. Essa virada de chave foi fundamental para mim.